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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

ESPONTÂNEA PRESSÃO

Por: Alexandre Mendes
   
  Sentou na velha cadeira de madeira, corroída pelos cupins. Apoiou o braço esquerdo sobre a mesa de metal. A mão direita levou o cigarro barato até a boca.
--- Bom dia. Podemos começar? Está pronto? --- Perguntou o médico na outra extremidade da mesa, com o indicador direito pronto para apertar o PLAY do gravador.
--- Bom dia. Estou. --- Deu uma longa baforada.
--- Pois bem. Diga seu nome, idade e fale sobre a sua infância e família. --- Disse o doutor, em tom paciente.
Dirigiu seus olhos para a umidade que decorava o teto da sala, deu um suspiro e iniciou seu depoimento.
--- Meu nome é Karl... Karl Staaden. Tenho 45 anos, nasci e cresci numa fazenda, em uma colônia alemã, no sul do país. meu pai era lavrador. Com ele aprendi muitas coisas... umas eu gostava, outras não.
--- Defina as coisas que gostava e as que não gostava. --- Indagou o doutor, olhando distraidamente para o relógio de pulso.
--- Bom, não gostava da minha vida lá. Arar a terra? Coisa pra gente inferior! Nunca me adaptei ao serviço. Meu pai, bem que tentou me fazer trabalhar com ele, mas não conseguiu. Fui embora, e vim parar aqui no Rio. O quê eu gostava? Das coisas que meu pai dizia sobre a Grande Guerra...; da farda impecável; da superioridade dos alemães. Meu pai participou da 2ª Guerra... Te falei isso? --- Disse, enquanto cutucava o nariz com o indicador esquerdo.
--- Não. Ainda não havia comentado. Seu pai foi nazista?
--- Sim. Meu pai serviu a pátria em uma das tropas do Terceiro Reich. A guerra acabou e o inimigo venceu. Meu pai conseguiu fugir e veio parar no Brasil (tosse), veio parar lá no sul, dentro de um navio. Acho que em 1946... algo assim.
--- E sua mãe? --- Retruca o doutor com os olhos cerrados.
--- Minha mãe? Conheceu na colônia eu tenho os olhos verdes como os dela. Estufou os seios, orgulhoso.
--- Hum... E quando foi embora? --- Pós- graduado bocejando.
--- Assim que senti o toque de Deus e a missão que me dera.--- Respondeu o paciente, enquanto pisava na binga do cigarro, embaixo da mesa.
---- Missão? Fale-me mais sobre isso? --- Pergunta o médico, sonolento.
O paciente fechou os olhos, meteu a mão no bolso da calça e trouxe mais um cigarro à boca.--- Tem fogo?
Sim. --- O profissional puxou um isqueiro do bolso esquerdo do jaleco branco e o acendeu para o consultado. --- Karl, a sua missão... fale dela.
--- Eu fracassei... Exterminar todas as raças inferiores (olhos lacrimejando)... Falhei com Deus (lágrimas descendo)... Falhei com meu pai (maquiagem borrando) . Logo de primeira, quando eu ía executar um negro com minha faca, em um ponto de ônibus, eu fracassei (Choro convulsivo)
Acalme-se... Tome um lenço. --- Estendeu o pano, o doutor, utilizando toda a técnica acadêmica que possuía. --- Você pode ter fracassado em sua missão, mas sabe, às vezes te vejo no pátio, as vezes no corredor... Não me parece tão infeliz assim!
 Dolores enxugou as lágrimas e a lama da maquiagem que se formava em seu rosto. Deu um suspiro, uma baforada no cigarro e desabafou:
--- Sabe Doutor, na verdade, todos os meus sorrisos e rebolados neste inferno, tudo o que o senhor vê e escuta por aí, tudo mentira!Não consegui matar o tal negro no ponto de ônibus com a minha faca e ele me reconheceu. Acabei vindo parar aqui, numa cela com 46 presos, aproximadamente. Eu era o único branco legítimo alí dentro! Tentei doutriná-los sobre a posição social em que deviam se manter. E veja o que fizeram comigo!(De volta a choradeira).
--- Calma, calma... --- Disse o médico, com os olhos avermelhados de sono, olhando pra seu Cartier no pulso. --- Olha, infelizmente nosso tempo acabou. Na quinta que vem, continuamos neste mesmo horário, ok? --- Sorriso forçado.
--- Tá bom, doutor. até quinta então. --- Dolores se levantou, desencravou a calcinha do meio das nádegas com uma das mãos e caminhou, cadenciadamente, em direção a sua cela, escoltada pelo carcereiro que lhe aguardava na porta.

3 comentários:

  1. Magistral, é surpreendente, a gente começa com Karl e termina com Dolores. Quando eu lecionava literatura norte americana, era comum notar que os nomes dos personagens tem a ver com o destino deles na trama. Parabéns.

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  2. Amigo!!!
    Adorei o texto!
    Talvez ter arado a terra tivesse sido melhor... ou talvez não... rsrs
    Bjs!

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  3. Da Alemanha ao Rio de Janeiro, cidade onde tantos chefes de polícias tem ascendência prussiana e sempre falham em sua "missoes", em limparem o país da mácula dos inferiores que aram a terra.
    Conciso, tolstoiano até, rápido como fazer uma viagem de ônibus pelas nossas ruas. Cheio, entretanto, de fatos que povoam o nosso dia a dia escondido das relacoes raciais no Brasil.
    Gostaria de publicar no blog da mamapress.

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