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segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

TAPA NA CARA 
ou 
SOMOS TODOS NORMAIS

   


Wagner T.


                                                                               Quando o mundo acabou
                                                                               Foi que nos perguntamos
                                                                             Levamos pra reciclagem
                                                                             Ou pro incinerador?      




            Tira uma arma e aponta pra ela:
            - Pare!
            Aterrorizada por um momento, fica estática, não sabe o que fazer. Afinal, não é sempre que em plena luz do dia de repente temos uma arma apontada pra nós.
            - Fique calma e você estará bem.
            Quando recupera a fala e os movimentos, volta-se para as inúmeras pessoas que transitam pela movimentada praça do centro da cidade:
            - So... socorro! Ajudem!
            Os passantes a olham com desaprovação e continuam seu caminho, com passadas mais rápidas.
            - Fique calma, eu já disse. Ninguém vai te ajudar.
            Desesperada, ainda busca ajuda:
            - Pelo amor de Deus, tem... tem uma pessoa armada aqui, não estão vendo? Ninguém vai fazer nada?
            Os passantes passam ainda mais rápido e quando ela se vira para sua direção, eles se afastam. Cria-se um espaço no mar humano onde está ilhada.
            - Está vendo? Ninguém se importa com você. Se eu matá-la agora, você não passará de uma nota na seção policial até o fim da civilização humana.
            Aquelas palavras surtem um terrível calafrio em seu corpo. Olha pro lado e ameaça correr.
            - Não fuja ou atirarei em suas duas pernas e a deixarei sangrar até morrer - repara nas pessoas que continuam passando - ou melhor, nós a deixaremos sangrar até morrer.
            Sabe que está falando sério. Está a sua mercê.
            - Vai atirar em mim aqui, no meio de toda essa gente? Você vai apodrecer na prisão.
            - Talvez sim, talvez não. Já lhe falei que ninguém liga se você vive ou morre, ou se eu estou na prisão ou em liberdade. Eles têm coisa mais importante pra se preocupar, como descobrir se aquele casal da televisão está mesmo namorando ou é boato. Eles dizem apenas "não mate ou irá pra cadeia". Se ensinassem o valor da vida humana, creio que não chegaríamos a esse ponto.
            Apesar da falta de sentido da situação, o que ouve é coerente, deixando-a desnorteada:
            - Está bem, olha... eu tenho dinheiro aqui. Pode levar.
            - Não quero o seu dinheiro. Não quero suas roupas caras, suas jóias radiantes e nem mesmo a chave do seu carro importado. - aproxima-se e murmura de forma sedutora - De você eu quero um beijo.
            Ela se afasta, constrangida, mas até aí talvez não seja um preço tão ruim a se pagar para voltar a seus importantes afazeres. No entanto:
            - Mas não em mim. Nele.
            Aponta um homem sentado em um banco a alguns metros dali. Um homem extremamente feio, mais feio do que qualquer um que a bela já tenha visto antes.
            - Vá até lá e beije-o. Não um beijo superficial. Beije-o com paixão. Quero ver seu batom desmanchar-se nos lábios dele e o cheiro de seu perfume cobrí-lo por inteiro.
            - Isso é loucura! Você é demente! Não vou fazer isso.
            - É claro que vai. Não tem escolha.
            Realmente não tem. Vê a horrível criatura levantar-se desajeitada e caminhar sem destino observando as vitrines. Aproxima-se timidamente. O feio percebe a bela vindo em sua direção e a olha com desconfiança. Ela o encara. Sente um grande mal-estar, mas precisa fazê-lo. Fecha os olhos e entreabre a boca. O feio não entende aquilo, e nem quer. Simplesmente a beija. A bela sente um hálito muito mais suave do que esperava. Aquela boca torta tem um gosto doce. O toque inseguro e forçado do início se transforma em gulosa volúpia. Abraçam-se com força. Há muito não beijavam com tanta vontade. Minutos depois, finalmente se separam. Por um momento, ainda se contemplam, encantados um com o outro, até que o feio despede-se cordialmente e segue seu caminho, assoviando.
            Por um momento, a bela fica ainda admirada pela surpreendentemente agradável experiência. Porém, o temor volta quando a arma está novamente apontada em sua direção.
            - Muito bem. Gostei de ver. Acho que vamos começar a nos entender.
            - Olha, por que não guarda a arma? Podemos conversar sem você me apontar isso.
            - Desculpe, mas ainda não confio em você. Pessoas são traiçoeiras. Agora preciso de um favor. Vê aquele homem?
            Mostra um homem barbado, sujo e esfarrapado perto dali. Ele fala sem parar e gesticula de forma exagerada. Quem passa perto evita encará-lo e finge que não há ninguém ali e que nenhum som chega a seus ouvidos.
- Quero que você vá até lá e converse com ele.
- Conversar? O quê?
- Qualquer coisa.
- Mas... mas ele está totalmente fora de si!
- Essa é sua opinião.
- Minha opinião? Olha lá! Ele tá falando sozinho.
- Se você não tivesse com quem falar, ficaria calada o resto da vida?
- Não ficaria dizendo coisas sem sentido.
- Física quântica faz sentido pra você?
- O quê?
- Pra mim física quântica é coisa de maluco. Mas se estudar o assunto, posso mudar de opinião.
- Eu...
Pára um momento, tentando refletir sobre tudo aquilo nesta incômoda situação.
- Não pense. Aja! Vá até lá!
- Por que você então não fala com ele?
- Já falei com ele. E muito. Agora é sua vez. Vá!
A imponência com que a última palavra foi dita a faz novamente obedecer a
contragosto. Pergunta-se até onde vai aquilo enquanto se dirige ao homem invisível que continua a falar agitado e buscar uma reação dos passantes:
            - Você também. E você. E você. Todo mundo.
            Meio sem jeito, a sã balbucia palavras quase inaudíveis:
            - Ei... hã... olá.
            - Hein? - O doido vira-se pra ela - Você acha que pode escapar? Não! Você e toda sua família!
            O doido fala e gesticula de forma agressiva. Em outro momento, a sã se afastaria rapidamente. No entanto, agora ela não sente mais medo e após o receio inicial fica mais à vontade pra falar com desenvoltura:
            - E a sua família? Onde está?
            Pela primeira vez em horas, o doido se cala por um instante, como se jamais esperasse que a sã permanecesse à sua frente e muito menos que lhe respondesse. Então olha para o céu:
- Estão lá. Todos lá.
            Inesperadamente, a sã compreende o doido, ou ao menos interpreta o que ele diz. O diálogo passa a fluir de forma natural.
            - Sim, entendo.
            - Levaram tudo. Eles me levaram tudo.
            - Eu sei. Por que não me fala delas, As estrelas?
            - As estrelas?
            - Sim, como eram?
            A agressividade do doido se dissipa totalmente, agora fala com ternura e emoção:
            - Era a estrela mais brilhante que tinha. Brilhava mais que o Sol e a Lua junto. Só que agora tá lá encima, muito alto. Mas eu ainda vejo o brilho dela. Das outras também. De todas.
            Os dois ficam ali a conversar e contemplar juntos a paisagem celeste, até que a sã é puxada e guiada por mãos fortes:
            - Muito bem. Você está me surpreendendo. Nossa jornada está quase acabando.
            - Quase acabando? Olha, eu tenho muita coisa pra fazer. O que você quer, afinal?
            - Vê aquela menina?
            É pouco mais que uma criança, de uns 11 ou 12 anos. Está suja e suas vestes estão rasgadas. Visivelmente é uma menina de rua ou de família muito humilde. De frente a uma movimentada avenida, espera o sinal fechar para esmolar.
            - Vá até lá.
            - E...?
            - Só isso.
            - Só isso?
            - Sim. Apenas vá.
            A tarefa é aparentemente tão simples que fica até um pouco decepcionada, embora também aliviada. Anda até o sinal. Lado a lado, a menina pobre observa atentamente o trânsito enquanto a moça abastada examina a pequena cuidadosamente, cada traço de sua fisionomia. Antes, teria nojo, mas agora, em um gesto que lhe sai de forma totalmente natural, passa a mão carinhosamente em sua cabeça, alisando seus cabelos encrespados. A menina pobre a encara e agradece com um sorriso. O sinal fecha e ela vai. A moça abastada a acompanha com os olhos. Foi o sorriso mais belo e sincero que já recebeu em sua vida.
            Uma voz conhecida sopra-lhe mais uma vez em seu ouvido:
            - Creio que está pronta pra sua última tarefa.
            Ela não diz nada. E percebe que a arma está abaixada.
            - Vire-se.
            Faz o que é pedido, agora não por medo, nem tampouco por subserviência, mas por curiosidade. Entre todo o movimento da agitada rua, chama sua atenção um aleijado, sentado recostado à parede de um prédio. Ele tem os braços somente até a altura dos cotovelos e as pernas na altura dos joelhos. Está no chão em meio a suas coisas, num acampamento improvisado, e a fita fixamente.
            - Está vendo como ele a olha? Percebe como ele a quer? Pode sentir a energia que pulsa dentro dele, esperando há muito tempo ser liberada? Captar sua angústia, por desejar o que sabe que não terá? Você sabe o que fazer. Faça.
            Ela, saudável e disputada, fita o rejeitado aleijado de forma sedutora. Com segurança, caminha até ele e num gesto de ímpeto selvagem se atira sobre seu corpo. Ferozmente arranca suas roupas enquanto o tateia. O aleijado não acredita no que acontece, mas responde com a mesma ânsia. Beija-a, lambe-a, faz tudo o que ainda tem capacidade. A saudável sente toda sua energia, toda a libido reprimida. Nota que um de seus membros ainda está inteiro e funcionando muito bem, coloca-o dentro de si. Vê as pessoas se acumulando num círculo ao redor estupefatas com o que presenciam. Todos os passantes param pra acompanhar o insólito casal, nem se lembrando mais de seus importantes compromissos. Uma grande multidão se forma. Todo tipo de comentário é feito. “Meu Deus, que horror.” “Ô gostosa, o próximo sou eu.” Fotos são tiradas. Sua excitação é total. Tal situação lhe proporciona um êxtase indescritível, inimaginável. Já teve vários amantes, mas jamais sentiu tanto prazer. Do aleijado, então, nem se fala. Vive um sonho.
            O fato, porém, não se consuma até o final. Vários policiais surgem, abrem espaço na multidão e a arrancam de cima do aleijado. Está presa.
            - O quê? Estou presa? - revolta-se - Agora vocês aparecem, né? Tem gente armada e perigosa andando por aí e vocês não dão a mínima, mas quando vêem gente se satisfazendo sem ferir ninguém não demoram a interferir.
            Dirige-se então à multidão que permanece assistindo a tudo como a um grande espetáculo:
            - E vocês, bando de abutres? Agora estão todos aqui se divertindo, mas fugiam quando eu precisava de ajuda. Sumam daqui! Voltem para suas vidas vazias! Continuem...
            A presa grita e se debate, mas é contida por dois dos policiais, que tentam acalmá-la. Os livres testemunham para os fardados restantes:
            - Não sei de onde ela veio, só vi que ela atacou o aleijado e estuprou o pobre coitado.
            - Como assim estuprou o pobre coitado? - Protesta o dito cujo, mas volta a ser ignorado.
            - Eu vi tudo. Estava por aqui quando a moça vinha vindo. Então ela parou e de repente começou a falar sozinha. Achei que devia tá falando em algum novo tipo de celular moderno que você nem vê, mas então foi até um homem e o beijou. Nossa, cara, que beijo! Quem dera ela tivesse me escolhido. Aí acho que ela cansou de falar sozinha e bateu o maior papo com um malucão que tava aí. Não, eu estava a distância, em nenhuma hora escutei o que ela tanto falava. Acho que ela conversou um pouco também com uma menina de rua e depois mandou ver no aleijado. Bicho, que mulher! Isso é que é mulher! Até que eu queria dividir a cela com ela, viu? O quê? Não, trabalho sim, aqui perto. Só parei um pouco pra...peraí, quantas horas? Nossa senhora, deixa eu ir nessa.
            A louca continua falando de tudo e de todos enquanto é algemada e levada para o carro da polícia sob um olhar de aprovação do público, menos do aleijado, que se tivesse mãos, bateria palmas pra ela. Irá para a delegacia sendo logo solta quando confirmarem sua posição social. E a partir daí sua vida mudará pra sempre. Se para melhor ou para pior, depende do ponto de vista.
            O tumulto termina e a rotina volta ao normal. As pessoas se dispersam satisfeitas, pois terão uma história e tanto para comentar com os conhecidos.
            Nisso, alguém guarda a arma em sua alma e declama ao poeta:      

                                                                  Ah o louco
Se ele nunca aparecer
Quem suportará viver
Nesse mundo tão tolo
           
           

           
           
           

Um comentário:

  1. Uma bela fábula urbana do companheiro Wagner
    Dá muito no que pensar

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